Águas de Janeiro

Olá, caro leitor acreano,

Seja muito bem-vindo ao “Sobre o Fim de Todas as Coisas” desta semana.

Antes de entrarmos na história, gostaria de agradecer profundamente pela recepção calorosa ao conto “Tinder Begins”, o início de uma série sobre os meus anos de aventuras e peripécias na plataforma. Sinceramente, não esperava tanto carinho de você, caro leitor, ao expressar sua opinião sobre uma história tão particular e pessoal. Isso com certeza me incentiva a continuar escrevendo.

Dados os recadinhos da paróquia, gostaria de informar que essas sagas não são lineares, ou seja, não são contadas toda semana em ordem cronológica. Então, não se afobem, caros mancebos. Essas histórias, ao final da jornada, farão completo sentido. Porém, ao longo do caminho, os textos semanais são paridos de forma que fiquem confortáveis para mim, enquanto revisito essas vivências e faço as pazes com o meu passado.

Dito isso, vamos à história da semana.

No ano dos deuses de 2025, faço 15 anos de carreira, sendo todos dedicados ao trabalho com call center. Desde sempre, e lá nos idos de 2010, quando tinha apenas 16 anos, meu ingresso na área foi fruto de um ledo acaso.

Tudo começou em 2008, quando um tio meu me incentivou a prestar o exame para a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo, a famosa – e, na época, ainda estatizada – Sabesp.

Confesso que, naquela época, fiz a prova achando que não iria passar, porque me sentia a criança mais burra do mundo. Eu era uma criança dos anos 90, e os professores daquela época tinham um termo da moda para crianças espertas: superdotados. Esse termo me causou muitos problemas ao longo da minha educação, já que as expectativas depositadas em mim acabaram se mostrando infundadas.

Até a oitava série, tudo correu bem. Eu era bom em todas as matérias, principalmente porque minha escola da época, o “Lourenço Filho”, era bem defasada no aprendizado. Porém, quando entrei em um cursinho pré-vestibulinho, tudo mudou. Eu não sabia quase nada de química, biologia ou física, matérias que alunos de escolas particulares dominavam no ensino fundamental.

Ao ingressar no colegial, essa defasagem ficou evidente. Não havia como esconder que aquele garoto, outrora considerado superdotado, na verdade era… burro de doer.

Dentro desse caldo de problemas escolares, prestei a prova para o estágio e, por força do Decreto nº 6.523, de 31 de julho de 2008, também conhecido como a Lei do SAC, no início do ano de 2010 todos os aprovados foram convocados para ingressar no call center, como mão de obra barata – para não dizer desvio de função sobre menores.

Digo que o ingresso foi um ledo acaso porque, uma semana antes, eu tinha buscado emprego como garçom. Naquela época, queria seguir essa carreira, já que meu sonho era ser chef de cozinha. Mas, ao ser chamado pela Sabesp, uma nova perspectiva surgiu: talvez uma carreira de funcionário público me caísse melhor.

Acho que esse foi o primeiro momento em que a vida real caiu sobre mim. A vida de um operador de telemarketing é pesada, especialmente para um jovem de 16 anos. Por ser um serviço essencial, isso me doía ainda mais.

Lembro que, em 18 de fevereiro daquele ano, uma adutora rompeu na Avenida Roque Petroni Júnior, deixando cerca de 750 mil pessoas sem água. Era minha primeira semana de atendimento, e aquela central estava um caos. Havia mais de mil pessoas na fila, exigindo a volta da água, que só retornaria uma semana depois.

Um dos casos que mais me marcou foi o de uma senhora que, pela voz, devia ter uns 65 anos ou mais. Quando informei o prazo de retorno, ela, no auge do ódio, me disse calmamente:

— Meu filho, já estou há dois dias sem água e você está me dizendo que só vai voltar daqui uma semana?

Confirmei a data, e ela continuou em seu monólogo:

— Tenho um filho autista, e ele está todo cagado até a altura da nuca. Como faço para limpá-lo sem água?

Ao ouvir essas palavras, confesso que fiquei pálido e, gaguejando, repeti o prazo na esperança de que ela não fizesse mais perguntas. Mas ela seguiu:

— Você já viu um homem de quarenta anos cagado até a altura da nuca, meu filho? Não há parte do corpo desse homem que não esteja suja. Como eu limpo isso sem água?

Eu emudeço. Ela se irrita e desliga.

Tirei uma pausa, fui ao banheiro e chorei. Aquilo me marcou. Como ela limparia um homem de 40 anos todo sujo? Eis o mistério da fé.

Outra história que ilustra bem o espírito do atendimento no famigerado 195 aconteceu quase 10 meses depois, no dia 24 de dezembro. Como de costume, alguma região da cidade estava sem água – provavelmente Cajamar, que, em 2010, era um terror em termos de falta d’água.

Um casal de idosos ligou questionando o problema. Informei que a água retornaria durante a noite. Eles ficaram furiosos, alegando estar há dois dias sem abastecimento.

Contexto importante: assim como técnicos de telefonia ou TV a cabo, os técnicos da Sabesp eram cobrados pelo SLA de atendimento, que influenciava o pagamento de bônus. Para mascarar problemas graves, eles frequentemente encerravam um chamado e abriam outro, criando a falsa impressão de que o problema não era tão grave.

Na época, eu não tinha essa noção. Já calejado, apenas repetia o prazo, como uma máquina velha e exausta. Até que o senhor me soltou a pérola:

— Menino, minha mulher tá com a buceta fedendo. Você vai me deixar, na noite de Natal, comer uma buceta fedida?

Ao fundo, ouço ela gritar: “Tá fedendo igual bacalhau!”

Aquilo me deixou atônito. Percebendo meu nervosismo, ele continuou:

— Me deixa comer uma buceta cheirosa, por favor!

Eu não aguentei ouvir mais e desliguei.

Sei que relembrado possa parecer engraçado, mas aquilo me doía muito, por saber que estava perdendo a capacidade de me empatizar com as agruras humanas, e isso era bem passado para um menino de 16 anos. Mas aquelas experiências me calejaram e me fizeram seguir até hoje. Sei que, se o Mauricio de 2010 olhasse para o homem que me tornei, ele sentiria orgulho.

E também sei que como se trata de um recorte talvez vocês não tenham dimensão do que era viver nesse mundo, ainda tenho muitas histórias como essas, mas deixo para contar em outra oportunidade. Obrigado por me escutar e até semana que vem.

Mauricio Martucci

Maurício Martucci é Economista, Podcaster e Arrombado nas horas vagas.